Cai a noite. Efêmera e visceral noite de xenon colorindo os olhos, o chão e o céu. Halogênio cegante de máquinas incandescentes e sônicas que rasgam o asfalto, ensandecidas. Cai a noite e com ela caem também os homens que nela enlouquecem.
E dentre todos os homens caem (especialmente) também os poetas. Ensurdecidos e entorpecidos do mais ácido Jazz, esparramados por mesinhas de canto e acobertados por fracas espalhafatosas luzes de neon alucinógeno, caem navegantes afogados no implícito e insípido negro em que ela, a noite, inevitavelmente culmina.
Nicotina perfurante excessiva, evidenciando-se. Álcool infectante, onipresente. Encorajador universal.
Caem os anjos.
Insinuantes, inusitados e desvairados, passeando pela escuridão de uma longa e fria madrugada. Sem rumo, sem perspectiva. Sozinhos. Exemplificando a margem de uma sociedade de perversões e hipocrisias fúteis.
O sentido - solitário - dispersa-se, envolto a frágeis possibilidades, mesmo quando a própria realidade destoa, soa irreal. Pessoas, como quaisquer outras, com seus desejos incertos e incompreendidos.
Definitivamente intrigantes anjos que caem e por lá permanecem, acorrentados. Por uma eternidade poderia vagar em vão, mas a improbabilidade se faz presente e entrelaça e eletriza nervos enrustidos e acelera as veias e inutiliza o ar.
Cai o pano. Olhos brilham.
Insensatez. Humor irônico sórdido e o balanceamento cuidadoso de palavras perspicazes.
"Veem-se... Vislumbram-se.
Beijam-se... Possuem-se."
Sete mil dias e uma vida particularmente ainda vive, abraçando a vulgaridade.
Se a manhã está particularmente fria, aproxima-te do sol.
Se cantas, cantas com a alma, que também canta.
Se te faltas e te cansas e te engasgas, tratas de tossir logo a tosse louca e vives tua suposta não-vida.
Se queres te jogar e te acabar em vida, faz-te e faz-te de uma vez.
De outra maneira, enxuga a lágrima seca e anda, anjo.
Mas faz-te, faz-te, desafogas da impertinência que por tanto persiste!
Todos o fazemos, anjo. Todos.
Estranho retornar de agora já velhas e ultrapassadas coisas. O ponto de vista, vivo, grita. As supostas escolhas ora tardias, ora precipitadas, aparecem como sutis consequências.
Seus olhos brilham e não é pelo luar. O frio e a chuva percorrem as costas de um corpo semi-adormecido. Ela fala e todas as palavras fazem sentido, menos as minhas. Ela fala e os sinos da sabedoria batem seus gongos atordoantes e as palavras gurgitam, fazem um tremendo sentido. Ela fala.
Ombros pesados adormecem etilizados. Tudo é bonito e engraçado sobre olhos desvairados.
Retornar às antigas coisas, aos velhos costumes?
Eles vêm e vão todos os dias, os dois, e a indiferença é uma bênção. Aplausos.
A rotina consome a si mesmo como uma cobra que morde o próprio rabo.
E que olhos lindos estes que brilham. Que mãos suaves estas que puxam o maltrapilho poeta. E que palavras doces e verdadeiras estas que perfuram com suas verdades agonizantes e sangrentas.
Algo se perdeu. Algo se perdeu.
Alguém se perdeu.
Leve e distante, sóbrio e insensato, atraente e maltrapilho, sábio e desvairado.
Poeta.
Afoga-te e joga-te em um canto escuro e te deixa.
Tropeça cambaleante na tua vida sem rumo.
Afoga-te e dorme e acorda e dorme e acorda.
Trapaceiro de meias-verdades. Afoga-te.
Uma noite em particular, um rosto familiar. Sentado de qualquer maneira no decididamente pequeno box, a água quente e reconfortante cai por tempo indefinido, lavando uma alma maltrapilha e cansada.
Água morna. Afogados esvaem-se pelo ralo fragmentos de memória, perdendo-se no mais sutil dos vãos, encontrando lugar para pedaços novos de enfim, vida.
Trivialidade obscena. Estupro social.
Uma agradável e particularmente filosófica conversa sobre a água morna e uma coleção não tão agradável de pequenos traumas, já impregnados caracteristicamente em suas próprias personalidades. Todos os dias anteriores vão aos poucos dissipando-se no vento, salvo pelas pequenas manchas que mesmo com o protetor solar, permanecem.
E mesmo quando aparentemente nada surpreende, algo certamente o faz.